Trecho do livro novo

            Quando a encontraram, seu corpo já estava em avançado estado de decomposição; as costas das mãos haviam sido comidas pelo que disseram ser ratos, os gatos dela jamais fariam isso com ela. Nem mesmo se estivessem presos junto do corpo há dias e morrendo de fome? Não, ainda assim, não, eles poderiam muito bem ter saído dali, e, de fato, foi o que fizeram, todos eles, não havia sobrado nenhum. Os pelos ainda estavam por toda parte, mas os gatos haviam abandonado o apartamento sem vestígios; ninguém soube para onde foram e que destino tomaram após a morte da dona, uma velha muito querida por todos do prédio, sempre vinha ao pátio conversar com os vizinhos, compartilhar rotinas e aguar as plantas que eram muito grandes para deixar na janela do apartamento e por isso deixava no pátio. Quando adoeceu e já estava impossibilitada de subir e descer as escadas, ficava à janela, acenando para quem passava e conversando com os vizinhos das janelas ao redor. Ela estava ali antes de todos os outros moradores, talvez tenha chegado quando o prédio ainda era novo, havia boatos de que ele tinha sido construído no final dos anos quarenta, logo após a Segunda Guerra, mas muitas pessoas, incluindo o zelador, diziam que, na verdade, o prédio já estava de pé décadas antes da guerra. O Vila Real era um prédio de quatro andares, sem elevador, vários corredores conectando os blocos e um pequeno pátio no centro que podia servir de vista para aqueles apartamentos que não tinham nenhuma janela que dava para a rua. Apesar de muito escuro e gelado em dadas épocas do ano, o lugar estava bastante conservado e havia passado por poucas reformas ao longo do tempo, apenas questões básicas, por exemplo, a instalação de uma rede de esgoto melhor e as trocas de fiação, que vez ou outra dava algum problema, como luzes que não acendiam em determinados cômodos ou que queimavam com uma maior frequência que o normal. Além disso, o prédio estava localizado em uma área considerada privilegiada da cidade, na Santa Cecília, próximo de mercados, farmácias, a feira aos sábados, bares e padarias, e, recentemente, um pet shop. O que acabou afastando muitos moradores e possíveis moradores foi o fato de alguns apartamentos não terem um banheiro, o que forçava aqueles que o alugavam a usar o banheiro comunitário localizado ao fim do corredor do térreo, próximo à escada que levava ao pátio. Com a oferta e a procura crescendo no bairro, vários prédios novos sendo erguidos, alguns com quitinetes melhores e, inclusive, com banheiro e uma boa fiação, o que atraiu estudantes que não tinham como custear um apartamento maior e mobiliado, a não ser que alugassem um quarto em uma pensão, o prédio em questão acabou ficando cada vez mais desvalorizado e muitos de seus apartamentos ficaram vagos, os que se mantiveram ocupados foram aqueles nos quais estavam moradores de longa data e que serviam praticamente como um histórico familiar. Sendo assim, a maioria dos moradores ali era de pessoas com uma idade mais avançada, quando alguma criança ou jovem aparecia eram filhos e netos dos moradores habituais. Agora, além de toda a desvalorização do lugar e das condições nas quais ele se encontrava, o fato de uma velha ter morrido da forma como morreu nas dependências do prédio fazia com que as poucas pessoas que se interessavam em alugar um apartamento por ali mudassem rapidamente de ideia. Algumas famílias tentaram vender os apartamentos que tinham, mas sem sucesso, tirando uma família ou outra que conseguia repassar o imóvel para conhecidos. No geral, era um bom lugar para se viver, havia uma estação de metrô muito próxima, não se tratava de uma área tão violenta como as outras que tinham prédios parecidos como o em questão, e o fato de a velha ter sido encontrada morta, devorada por alguma criatura desconhecida, não um gato, não ratos, não, os dentes destes são muito pequenos para fazer o estrago que foi feito, enfim, o fato de a velha ter morrido como morreu não poderia ter muita coisa relacionada com o fato de o bairro ser um lugar seguro ou não, afinal, não havia, além dos assaltos e roubos nas redondezas até o Arouche, nada a temer, apenas coisas comuns no resto da cidade, mesmo em bairros considerados superiores e com um preço de aluguel ainda maior haveria de ter algo com o que se preocupar, diziam sempre os moradores do Vila Real. Os moradores procuravam enxergar a morte da velha como algo desconectado com a realidade em que viviam, ainda que algumas crianças e jovens da região comentassem uma coisa ou outra sobre histórias de encontros secretos durante a noite, gatos percorrendo os telhados em bando, desaparecimentos de objetos que sumiam de forma misteriosa, quase fantasiosa, diriam alguns. Há quem acreditasse também em bruxaria, que a velha era uma bruxa, mas veja, Dona Odete era uma senhora católica, não faltava uma missa de domingo, sempre com o terço na mão, isso, é claro, antes de a velhice deixar as pernas tão frágeis que as escadas haviam se transformado em perigo. Mas bruxaria… não, não Dona Odete, isso era coisa das crianças mais velhas que se estranhavam vez ou outra com os gatos, eram muitos, isso sim, sabe-se lá quantos… Uns cinquenta? Talvez até mais. E rondavam pelo prédio dia e noite, subiam nos telhados e descansavam, lambendo suas patas e observando o pátio com a vista lá de cima. Era uma visão boa, a que eles tinham, dava para ver toda a rua e também a de trás do prédio, o terreno baldio que havia na rua do lado e as janelas das casas e sobrados vizinhos. Curiosidade essa que as crianças mais velhas nutriam no decorrer da tardezinha, quando o crepúsculo se fazia erguido na vista do horizonte. Uma curiosidade um tanto mórbida, diriam alguns. E iam todos os garotos e garotas com seus binóculos a algum ponto do prédio para avistar as janelas alheias. Não no telhado, no telhado apenas os gatos, guardavam ali seu território quase como que sagrado ele fosse de fato. À noite os telhados ficavam tomados pelos bichos, de longe era possível ver os olhinhos brilhando mergulhados na escuridão como vagalumes numa mata cercada de toda a treva que uma noite sem lua pode oferecer. Talvez seja essa a razão pela qual Dona Odete havia ganhado a alcunha de bruxa pelas crianças mais velhas. E por isso então os misteriosos desaparecimentos de louças, roupas e outros itens sem valor aparente. Diziam as crianças mais ousadas que a velha mandava os gatos roubarem os objetos das pessoas para que assim ela pudesse fazer suas bruxarias, porque, sim, todo mundo sabe que é preciso ter em mãos um objeto pessoal da vítima para poder lançar qualquer tipo de feitiço sobre ela. E os gatos ganhavam outras formas quando adentravam os apartamentos alheios, havia quem acreditasse que podiam se transformar em qualquer coisa que fosse, até mesmo ganhar a forma de um humano, e que, caso você se deparasse com um gato metamorfoseado numa figura humana, havia três jeitos muito simples de saber se tratava-se de um ser humano legítimo ou não. Primeiro: era preciso observar a sua postura; gatos na forma humana estavam sempre com a coluna ereta, tal qual um garçom desses restaurantes da Oscar Freire. Segundo: deveria se atentar quanto aos olhos; um gato conseguiria facilmente se transformar em um ser humano, mas seus olhos jamais se transformavam junto, então o contato visual era extremamente necessário. Terceiro: pergunte qualquer coisa para saber o que ele dirá, desconfie do silêncio; um gato, mesmo que na forma humana, não pode de forma alguma falar, ele simplesmente não sabe como. Feito isso, seria muito fácil saber quem era de fato uma pessoa. As crianças mais novas, quando ouviam isso de seus irmãos e irmãs mais velhos, chegavam a desconfiar de qualquer um. A garotinha que morava no apartamento doze chegou até mesmo a desconfiar da própria mãe depois que ela fez uma cirurgia plástica. Vejam só essas crianças! E pra que a pobre da Dona Odete vai fazer alguma coisa pra prejudicar alguém? Ela é sempre tão boa. Nunca tratou ninguém de forma diferente, sempre muito amável. Mas os desaparecimentos misteriosos nunca foram desvendados. São os gatos, diziam as crianças mais novas também. Já outros acreditavam que se tratava apenas de crianças pregando alguma peça, o que muitas vezes elas de fato faziam. Quem não quer um bode expiatório? Diziam os pais no almoço de domingo no meio do pátio, que agora eram cada vez menos frequentes. Parece que com o passar do tempo as vidas começaram a ficar cada vez mais privadas, os moradores conhecidos iam se mudando para outros lugares, e novos iam surgindo, reclusos, antipáticos, de cara amarrada, e depois se mudavam também e novos moradores surgiam; universitários com suas turmas barulhentas, uma nova república, os filhos de antigos moradores que iam embora mais cedo ou mais tarde, deixando assim os apartamentos vagos. Ninguém quer alugar essa merda! E, com o tempo, o lugar foi se tornando uma espécie de antiguidade no meio do bairro. E desde a morte de Dona Odete, nada mais de gatos e de seus passeios nos telhados, fato que intrigou não só as crianças, mas também alguns adultos, que se questionavam para onde os bichos poderiam ter ido já que eram tantos. O estranho de tudo, que só as crianças notaram, é que os sumiços de objetos continuaram acontecendo, mesmo sem Dona Odete e seus gatos.

2 comentários em “Trecho do livro novo

  1. eu to mt maluca com o final dessa porra.
    queria mt tirar umas dúvidas com você pq to a 1 passo da loucura.
    era td real? o final era pra ser assim mesmo?

    quero muito fazer outras perguntas mas não quero dar spoilers pra algum leitor do blog 👀

    Livro sensacional, mesmo com a rotina corrida dava um jeitinho de ler, já vou começar mais um kkkkk

    1. Tô muito feliz que você gostou assim do livro, Kauanny!
      Não quero arruinar sua experiência de leitura, mas posso dizer que o fim era pra ser assim mesmo.
      Estou aberto a perguntas, mas não sei se elas têm uma resposta só…
      Obrigado pela leitura! Abraço ^^

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