Eu havia pedido licença do serviço. Simplesmente não tinha mais o mesmo fôlego e a mesma força para trabalhar; me cansava com muita facilidade, qualquer coisa leve me trazia uma fadiga para a beira da garganta. Com a folga eu podia descansar bastante, limpar aquela infestação de cupins debaixo da minha cama e ler mais. Fazia muito tempo que eu não lia tanto como li no período em que estive ali na pensão. Pensei em voltar para casa e pegar alguns livros que estavam lá, mas recusei a ideia. Não sei o que passou por minha cabeça ao certo, mas acreditei que eu precisava estar onde estava, que ir para casa, ainda que para uma rápida visita, poderia não ser bom, já que com certeza eu desistiria de voltar para a pensão. E depois veio a dúvida: seria preciso? Digo, voltar para a pensão. O que eu estava fazendo ali era só perder meu tempo, sabia que Simone não estava ali. Mas as perguntas, elas se acumulavam como lixo podre sobre mim, me afogando no líquido negro do desconhecido; o que era para estar ali que eu não estava vendo? Por que nada havia se materializado para mim da forma como eu acreditava que deveria? Não sei… não sei… Mas havia um impasse da minha parte em voltar atrás e esquecer de tudo. Não é possível se esquecer do que mergulha no mais profundo da nossa cabeça, aquilo que reage aos pensamentos e às lembranças como um elemento químico reagindo a outro mais nocivo. Então sabia que não poderia deixar a pensão sem resolver algumas questões. Além do mais, eu estava ficando próximo de Natanael, e isso era ótimo, porque ele tinha a chave para o lugar onde eu queria ir, ele sabia das coisas que eu queria saber, era nele que eu devia colocar meu investimento. Mas não sei… de início o achei estranho, depois algo nele foi me puxando para perto; o jeito de mexer as mãos sobre o corpo, o sorriso angulado, as palavras, os livros que lia. Certa noite me peguei observando-o dormir quando voltei do banho. Ele estava ali, na cama, deitado de barriga para cima, com um braço sobre ela, num gesto que minha mente desenhou em mim, de súbito, com afeto e mistério. E era essa coisa em relação a esse afeto por Natanael que me confundia, uma mórbida loucura, uma muito mal interpretada. Eu não sabia o que fazer. Toda vez que o via eu enxergava Simone; mãos, braços longos, costas ossudas. De repente, nessa mesma noite, ele acordou e me viu a observá-lo. Eu poderia ter desviado o olhar e me mexido, mas fiquei imóvel, como as memórias da dor e do riso, impenetráveis muros de amor e de culpa. E fiquei ali, resplandecido num sorriso que começava a se erguer nos músculos do rosto; um comedido de vozes no silêncio; noite e dia ao mesmo tempo. E Natanael sorriu de volta. O que foi? Perguntou esfregando os olhos sonolentos. Nada, respondi num sorriso um pouco mais débil, mas dedicado ainda mais àquele afeto. E mais uma vez, eu não sabia o que fazer. Acho que acabei indo dormir.
O fato é que, na procura por um livro para ler no meu período ocioso, nos fundos da mala, encontrei meu Cem anos de solidão, uma edição linda que Simone havia me dado no meu aniversário. Cheirei o livro, alisei suas páginas, respirei aquilo que era dor e era sorte, vivez na sua eterna fonte. E a dedicatória me fez respirar fundo. Deslizei a ponta dos dedos pelas palavras escritas a caneta. Estava completamente entregue ao passado outra vez. Na Praia do Cedro, ali mesmo em Ubatuba, Simone e eu num dia de sol guardado, areia como névoa e o som das ondas destruindo as risadas de algumas pessoas com suas cadeiras de praia. A noite já estava sobre o alto das nossas cabeças, mas a luz ainda se fazia no horizonte como o restante de uma festa. Antes mesmo de a escuridão alcançar a plenitude, todas as pessoas já haviam deixado a praia. E então somente nós dois. Deixamos nossas coisas sob um telhado de galho de uma árvore rasteira, abrimos nossa barraca e estendemos algumas toalhas na areia. Já havíamos trazido lenha para a fogueira e tínhamos acabado de acendê-la. Depois molhamos nossos pés na água, percorremos a orla da praia e encontramos uma tartaruga na areia. Receosos, a devolvemos ao mar, ainda que acreditássemos que não devíamos tê-lo feito. E houve momentos que até hoje ainda me parecem firmes como as rochas onde pisamos com os pés molhados; investigamos ruínas sob a água; o brilho verdejante que colhia nossos corpos quando agitávamos nossos braços. As risadas farfalhavam como o som da água. A noite foi arrastando na pele um frio estranhoso se medido nos pelos eriçados. Esquentei o corpo de Simone, beijei sua bochecha, aspirei o perfume de seu cabelo, fechei meus olhos como se me fechasse na existência de nós dois naquela praia deserta. Ela me olhou na paragem do tempo. Eu nunca mais na vida vou querer outra coisa que não seja esse sentimento acobertado nesse silêncio, disse para mim mesmo. Nossos corpos se encostaram, a superfície da água criava a sensação de que estávamos levitando na escuridão. Simone reclamou do frio e voltamos para a areia, nos sentamos em frente à fogueira, bebemos vinho, comemos salsicha e pão de alho na brasa. Sussurramos safadezas, inventamos que, dali em diante, nós dois estaríamos entregues um ao outro, palavra por palavra, dia após dia, sem olhar para trás nem para frente, só mantendo os pés no momento-instante, o átimo do agora. E que seria inevitável. Fodemos na barraca e depois dormimos com as ondas quebrando na areia próximas a nós. No outro dia de manhã, quando acordamos, já havia algumas pessoas na praia, então decidimos ir embora. Quando entramos no ônibus de volta para a cidade, Simone abriu sua mochila e me disse Ah, eu esqueci. Toma, e me entregou o Cem anos de solidão. É pra gente construir a nossa própria Macondo. Beijei a testa suada dela e sorri, agradecendo pelo presente. O mesmo sorriso se desenhava no meu rosto enquanto eu estava ali, no quarto da pensão, alisando meus dedos pelas páginas esquecidas daquele livro. E eu que acreditava que sofrer seria palavra pouca…
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