Outro trecho do livro novo

            Era uma noite de frio terrível. O corpo do animal estava estirado no chão, patas esticadas e olhos abertos fitando o vazio. As formigas já começavam a invadir sua boca e se aproveitar do sumo cadavérico que surgia dos mais minuciosos poros. Foi uma morte violenta, com requintes de crueldade, certamente. As marcas dos golpes, provavelmente de uma barra de ferro ou enxada, ainda se faziam perceptíveis mesmo de uma distância considerável da cena. As pegadas de sangue que circundavam o corpo eram grandes. O caminho que o sangue quase seco percorria era um cimento invadido em um ponto ou outro pelas gramíneas que cresciam sem serem interrompidas. Por vezes o vento fazia dançar a pelagem do cadáver. Nenhuma lua testemunha do ato, mas grandes nuvens chumbosas com suas caras abertas. E a única luz que se projetava sobre o ponto onde estava o cadáver era a de um poste da rua, uma luz que piscava vez ou outra seu tom amarelado. Duas mulheres se aproximaram e começaram a observar o corpo no chão, pendiam a cabeça para o lado como um cachorro tentando compreender um som desconhecido. Olhavam sem espanto e com as rugas de seus rostos pouco se mexendo, apenas tornando-se conscientes de sua presença numa quase expressão de dúvida. As mulheres respiraram fundo e, em seguida, agacharam-se as duas próximas ao corpo, percorrendo, ambas, ao mesmo tempo, as palmas de suas mãos sobre a pelagem do animal. Entreolharam-se. Uma apanhou uma faca de cozinha de dentro de seu casaco. A outra retirou de uma sacola de pano que carregava consigo feito bolsa um vasilhame guardando um líquido transparente. Sem premeditações, a faca deslizou pela barriga do cadáver e criou uma fenda carnosa pela qual se descobriram os órgãos ainda molhados e que foram arrancados um a um com muito cuidado, sendo colocados em seguida no vasilhame que continha o líquido. Estavam ali fígado, intestinos, rins, estômago, pâncreas, pulmões e coração – e, ao pegá-lo nas mãos, este último, era como se ainda pulsasse, ou se recobrasse de seu pulsar, fortalecido, querendo atirar-se daquela mão que o possuía por um brevíssimo instante de cuidado. E logo, o coração, enganado em pulsar – ou se pensar pulsante –, encontrava-se no mesmo recipiente que os outros órgãos quase vivos, mergulhados na pergunta líquida do vasilhame. A mulher que portava a faca limpou o sangue a deslizar no gume usando sua própria roupa, um vestido que chegava pouco mais abaixo dos joelhos, guardando, logo em seguida, o utensílio de volta no bolso do casaco que cobria o vestido. Depois disso, retirou de outro bolso uma agulha grossuda e uma linha igualmente grossa, começando a costurar a fenda que havia sido aberta na barriga do animal. Não demorou muito para que o curativo ficasse pronto. As mulheres então se levantaram e respiraram fundo, não se sabe se por cansaço, pela idade ou se pela sensação de se deparar com um cadáver e não poder retirar dele uma resposta, uma explicação, como se olhar os olhos naquela cara não fosse suficiente para imaginar e reinterpretar seu brilho quando vivas as duas esferas. As mulheres, uma carregando o corpo e a outra o vasilhame cheio, caminharam pelo mesmo cimento invadido pelas gramíneas e chegaram até um terreno baldio ali próximo, onde um matagal confundia a vista sobre o que havia por trás dele. A cidade como pano de fundo ainda espalhava seus pontos luminosos no breu que a partir daquele ponto era um refúgio, ou um esconderijo. As mulheres então adentraram o matagal e, após alguns metros, começaram a cavar com as próprias mãos uma cova num ponto do terreno que não podia sequer ser vislumbrado da rua. Ainda que a escuridão se projetasse ali como abrigo e que a luz mais próxima não chegasse no chão, as formigas percorriam seu trajeto noturno e outros pequenos insetos pousavam nos restos da terra, nas pedrinhas no caminho, e uma vida muito secreta e silenciosa se desvelava debaixo do manto da noite, onde tudo o que era pequeno podia ser grande, ignorando sua forma, ignorando todos os sons e toda luz. A cova logo estava pronta para receber o cadáver; fez-se um buraco não muito fundo, de modo que o corpo poderia se decompor mais rapidamente. Com as mãos ainda barrentas, uma das mulheres pegou o cadáver como se o embalasse e o colocou na cova, sussurrando a ele um secreto sem voz. Em seguida começaram a pegar a terra com as mãos em concha e a despejá-la sobre o cadáver, que aos poucos foi desaparecendo até não restar mais nenhum ponto de seu corpo à mostra. Após cobrirem a cova e se certificarem de que o local estava coberto o suficiente pelo mato ao redor, as mulheres então voltaram, com passos apressados, para o lugar de onde vieram, ainda que a rua estivesse deserta e não houvesse como ninguém as observar de onde elas estavam.

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