“O que seria a eternidade senão a memória dos vivos?”

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A memória é isto: Um eco.

Sempre pensei que se alguns eventos gritassem mais alto do que outros eles chegariam mais longe no tempo, de garganta em garganta, de geração em geração.

Não quero ter filhos, então o que me sobra para que um pouco do que sou, do que fui, continue sendo? Até quando a internet estará aqui? Até quando os livros, os filmes, as músicas, as tantas histórias? Depois do fim haverá outro fim e depois mais outro?

Talvez esses ecos se entrelacem, se juntem em algo além, alguma coisa outra que não a que saiu da garganta.

Mas aqui, sim.

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A saber, Belinha era muito pequena.

Belinha morreu poucos minutos depois da meia-noite do dia 27 de janeiro deste ano (2019). Foi tudo muito rápido, não deu tempo de nos prepararmos e o que ficou foi uma grande pergunta pousando no vazio. E isso se perdurou por muito tempo. Desde então fiquei querendo, tentando, me forçando a escrever algo sobre ela, sobre o que foi essa conexão entre nós e como tudo está conectado à morte – até mesmo o amor, o único a atravessá-la e sair inteiro.

Então pensei que se houvesse algum registro, ainda que ínfimo desse encontro cósmico, dessa conexão tão familiar, talvez já fosse necessário.

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Minha cama como ela geralmente fica em dias de frio. E Belinha apenas esperando eu colocá-la para cima (ela não conseguia subir sozinha porque a cama é muito alta).

Belinha passou exatos 8 anos comigo e com minha família.

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Nós dois deitados na sua caminha e o cobertor rosa com o qual ela foi enterrada.

Ela nasceu em abril de 2010 e passou por maus bocados até que a adotamos e a trouxemos para casa no dia 12 de janeiro de 2011.

Desde então ela passou a estar presente em tudo; tudo o que eu vivi na minha passagem da adolescência para a vida adulta; nos períodos mais difíceis da minha saúde; em noites de frio; na passagem de um relacionamento amoroso para outro; e em absolutamente tudo o que escrevi.

Belinha dormia, majoritariamente, no meu quarto – nos dias quentes, em sua caminha, no chão; nos dias frios, em cima da cama, comigo – e, antes de amanhecer, me pedia loucamente para ir até o quarto dos meus pais, onde dormia, junto deles, em cima da cama, até a hora que meu pai acordava para ir ao trabalho.

Belinha adorava salsicha. Em meados de 2016 ela teve uma lesão na coluna e quase morreu. Nesse período, o veterinário nos aconselhou a dar o remédio que ela estava tomando dentro de um pedaço de salsicha. Desde então não conseguimos mais fazer com que ela comesse a ração sem salsicha. Por vezes ela só comia a salsicha.

Belinha gostava de sair para passear a qualquer momento do dia, mas seu horário preferido era por volta das sete da manhã, quando meu pai se levantava para ir trabalhar.

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Ela nasceu de uma cachorra que já havia dado cria muitas vezes e que estava velhinha e fraca, por isso Belinha não era muito forte de saúde, o que a levou a ter uma lesão na coluna muito cedo, além de ser bastante frágil.

Nós a adotamos pois ela estava sofrendo maus tratos na casa em que ficava. Não demorou muito tempo para que meus pais a deixassem dormir em cima da cama e ela dominasse a casa toda.

Ela pesava 4 quilos.

Seu pelo era extremamente macio, mesmo para uma vira-lata.

Ela odiava o caminhão do lixo.

Ela adorava passear na pracinha.

E detestava tomar banho.

Não se importava em fazer xixi na cozinha.

Belinha era meio brava, tendo mordido a minha cara muitas vezes enquanto eu tentava beijar seu nariz. Inclusive ainda guardo uma cicatriz na boca.

Ela tinha uma tetinha faltando.

Suas perninhas da frente também eram um pouco tortas.

Ela detestava ficar sozinha em casa.

Seu bichinho preferido era um porco-espinho esgarçado que cunhamos de Yuri, e que, quando ela morreu, enterramos junto dela.

Belinha foi a melhor coisa que poderia ter me acontecido.

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Eu espero então que o mundo receba de volta essa presença que um dia veio dele próprio. Esse texto-registro é uma mera tentativa de fazer Belinha estar no mundo como um eco que não apenas meu. A partir disso, cada pensamento sobre ela, sua memória, cada palavra que eu escrever, partirá de encontro para a mesma presença no tempo.

Há sempre Belinha no que eu escrevo, sempre haverá.

O que eu tento fazer quando escrevo é preparar a garganta para gritar, dessa forma, quando eu seguir o mesmo caminho que Belinha, ainda haverá alguma presença, minha, de Belinha, para aqueles que vislumbrarem a eternidade através de nós dois.

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Até um dia. Na noite ou na luz. Não devo sobreviver a mim mesmo. Sabes por quê? Parodiando aquele outro: tudo o que é humano me foi estranho.

Hilda Hilst, Rútilo nada.

Guia para iniciantes na obra de Hilda Hilst

 

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Decidi – depois de muita gente que não conhecia a obra da Hilda me perguntar por onde começar a ler os livros dela – fazer uma espécie de guia para auxiliar quem decide ir por esse caminho sem volta que é a literatura de Hilda Hilst.

Trata-se de um panorama geral, tem muito mais coisa além. A safra poética, por exemplo, é bastante extensa, e o teatro quase não é lido e trabalhado.

Não é uma regra, você pode começar por onde achar melhor, tudo depende da tua capacidade intelectual e quão assíduo como leitor você é; quais autores você tem como referência, etc.

No entanto, a prosa de HH é completamente mergulhada em misticismo, filosofia e fluxos de consciência que funcionam como quebra-cabeças, sendo assim, não é uma obra de fácil assimilação e digestão. Por outro lado, a recompensa é enaltecedora.

Com toda certeza, encarar a obra de HH é um dos melhores desafios que você fará na tua vida.

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Você pode ler o conto “Rútilo nada” AQUI.

 

“Rútilo Nada”, de Hilda Hilst

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Hilda Hilst (1930-2004) será a autora homenageada da FLIP em 2018 e sua obra está sendo relançada pela Companhia das Letras (em breve escreverei um texto sobre o fato de essa editora em questão decidir publicar a obra da Hilda só agora), que ano passado publicou uma reunião de toda a obra poética da autora intitulada “Da poesia”. Este ano a editora publicou uma nova reunião, mas dessa vez da obra em prosa de Hilda.

Como a obra de Hilda foi extremamente relevante para a minha formação e desenvolvimento como escritor, resolvi compartilhar aqui o conto “Rútilo Nada”, integrante da livro-reunião “Da prosa”, que a Companhia das Letras publicou há pouco.

O conto pode ser lido AQUI.

Para quem ainda não entrou em contato com a obra de Hilda, uma dica bacana é começar pela safra poética, daí partir para o teatro dela (que será relançado este ano também), e então depois se adentrar pela prosa labiríntica e mística da autora, conhecida pela profusão de vozes narrativas, fluxos de consciência e monólogos desordenados à uma primeira vista.

Mais do que nunca, a obra de Hilda precisa ser lida cada vez mais. Como a própria autora dizia: “As pessoas precisam ser acordadas. É muito importante, se uma pessoa está dormindo por muito tempo, você, de repente, fazer uma ação vigorosa para que a pessoa se levante.”