O Deus Cadela – trecho 1

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Coloquei meu pé sobre o tamborete enquanto Simone molhava o algodão no álcool. Quando ela começou a passar o algodão molhado no corte em meu pé, mordi a gola da minha camiseta e acabei lambendo alguns grãos de areia. Depois de fazer a assepsia e colocar um curativo no meu pé, Simone começou a passar as mãos na minha perna, tirando os grãos de areia que ainda se refugiavam nos meus pelos. Tem uma perna tão branca, ela disse. Eu apenas ri, fiquei buscando o que dizer, mas só ri. Vai vai, diz alguma coisa, porra. Ela também riu. O sorriso também é bonito, ela continuou. Pra onde tá indo essa merda? E então ela foi fazendo um carinho no meu joelho, foi deslizando a ponta do indicador pelos pelinhos da coxa e riu outra vez, abandonando minha perna e indo guardar o vidro de algodão. Eu então tirei meu pé do tamborete e, com a maior cautela possível, repousei-o sobre o tapete à beira da cama. Simone foi jogar as coisas no lixo e, quando voltou, ao invés de continuar passando as mãos na minha perna, que já estava toda eriçando os pelinhos, decidiu que era uma boa hora para passear pelo meu quarto.

Não pensa que eu faço isso sempre, não.

Isso o quê?

Isso de vir na casa de estranhos assim de cara.

Eu jamais pensaria isso de alguém como você.

Eu só vim porque você tá machucado.

Senão não viria?

Claro que não, com o sorrisinho fácil nos músculos.

Caralho, era esse sorriso que tantas vezes me matou, e eu, como se me recusasse a morrer, ou me dar por vencido – o que pode ser quase que a mesma coisa –, sempre voltava à vida depois desse embate com o sorriso de Simone, praticamente angulado e assassino. Eu sempre a vítima com a Síndrome de Estocolmo.

Simone, ela disse quando nos apresentamos enfim. Simone. Eu sorri, porque ela era tão pequena e frágil em cada expressão, e aquele nome tão cheio de todas as vísceras que se escondiam por debaixo da pele. Simone, foi ecoando em minha cabeça. Simone. E eu olhava aquela boca, aquela boca desenhada na pele com o batom enfraquecido pela maresia. Os olhos me penduravam como um cachorro na coleira tentando alcançar o sentido das coisas que são brutas dentro da própria delicadeza. Ficamos conversando sobre algumas coisas que não julgávamos importantes mas que faziam sentido serem ditas em voz alta, como se fossem curiosas por existir nas nossas bocas trêmulas pelo nervosismo do encontro primeiro. Simone parecia a Nastassja Kinski naquele filme famoso do Wim Wenders, usava uma blusinha meio rosada, uma que eu sempre via com ela a partir de então. Simone, de uma coisa que eu não encontrei um nome para comparar, não sei, talvez fosse difícil para que eu pudesse entender, ou forjar entendimento. Aquele era um daqueles momentos que só existem como se estivessem fora da vida, e mesmo assim quisessem ser abraçados por ela, a vida. E Simone, minha Nastassja Kinski.

 

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