O Deus Cadela – trecho 3

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Com o tempo viajando nos dias como um jato branco de espuma no céu velado, Simone é uma personagem cada vez mais coadjuvante nos meus pensamentos, mas aquele tipo de participação ligeira que mergulha a cabeça em ecos cavernosos. Eu não sei, talvez seja minha mente vacilando vez ou outra diante da realidade penetrada no viço da memória, talvez seja minha ponderação a partir da experiência trazida pela realidade, não sei… Pode ser. É inevitável o soluço depois da morte, a que se faz incrustada na vida, mais do que aquela que se mantém difusa no esquecimento. Eu bem que queria esquecer completamente Simone, mas eu fico me perguntando “E no depois? O que vai haver para contar dos segredos?”. Seria bem capaz que eu me encontrasse outra vez no labirinto de um sentimento como este que começa a se esvair de mim, como se já não bastasse tudo o que aconteceu desde o rompimento até agora. É dor, eu sei, mas uma dor mansa, que dilacera a carne mas que depois a beija com os lábios rabiscados de batom. E a mulher assassina se retrai como se fosse inocente da matança que provocara. Mas a memória confunde às vezes, quase sempre, quero dizer. Ela funde sensatez e dúvida, morte e sexo como lava num desfiladeiro rochoso, entremeando-se às próprias rochas e, por fim, se fazendo rocha também. E eu penso em tudo, penso no abismo e nas rochas, nas pequenas coisas que sobrevivem depois da morte na boca, depois de deixar a língua amortecida com os golpes palavrosos da vertigem. E a voz de Simone, nessas vezes em que o todo da memória me recobra e me atinge num estado de espírito distraído, me diz em sussurros lascivos as muitas coisas soçobradas debaixo daquilo que eu nutri para conseguir me esquecer de tudo o que passou, e então vejo que tudo permanece lá; enquanto eu estiver vivo, tudo estará lá, do mesmo jeito que sempre esteve. As coisas só existem se são pensadas. A existência de tudo que está aqui – e até a do que não está mais e a do que virá – nada tem a ver com morte ou vida, ela consiste apenas no pensamento e no seu ato conjunto. Eu só existo em mim e na memória de quem me sabe e que, por um tempo, aqui continua, mas no depois, quando o todo for absorvido pelo esquecimento, eu não existirei mais. A palavra mesmo, ela só existe porque é falada, não? O tempo também, se ele existe é porque os relógios estão nas paredes e porque se olha para eles, porque são redondas as horas e porque nelas se trabalha muito, porque as coisas se movimentam ao redor e dentro dos relógios. Quando eles caírem das paredes, nem mesmo o tempo terá sobrado. E eu fico me perguntando o que existe fora do tempo e, ainda assim, dentro da vida. Terá tudo sobrevivido a isso? Simone com sua voz e as coisas todas que sobreviveram até agora, as coisas que ela sempre me traz através da memória. E o nome Simone, terá ele sido o quê, depois de tudo, quando tudo terá despencado com os relógios? Porque, num momento ou noutro, o jato branco de espuma irá se perder no próprio céu onde esteve desenhado.

 

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